Sabor doce da infância

por Convidado 6 de outubro de 2017   Convidado

* por Sérgio Marchetti

“É comum a gente sonhar, eu sei/Quando vem o entardecer/Pois eu também dei de sonhar/Um sonho lindo de morrer…” V.M.

No entardecer da minha vida, eu também dei de sonhar e recordar. E, para dizer a verdade, ando com um desejo inexplicável de comer doce de leite em barra, mas que tenha o mesmo sabor dos doces que minha avó fazia na fazenda. Que saudade daquele fogão a lenha bem no meio da cozinha, soltando fumaça e preparando surpresas que agradariam plenamente à gula das crianças (e dos adultos também).

Adoro doces e quitandas da roça. Um café numa mesa com toalha xadrez, canecas esmaltadas, broa quente, bolo, biscoitos guardados em latas são o que aguçam minha gula. Comidas nem tanto. Confesso que a compulsão é fruto das lembranças do tempo em que eu era apenas uma criança repleta de sonhos.

Tenho sido agraciado com algumas mesas de café que me trazem satisfação. Mas, aquele doce, ainda não o encontrei – continuo à procura. Já comprei de vários fornecedores com a promessa de que havia sido feito no fogão a lenha e com leite direto do curral. Mas, embora os ache gostosos, ainda não são o que busco.

Minha avó fazia o doce de leite num tacho de cobre e depois o despejava numa enorme bandeja de madeira – que ela não chamava de bandeja, mas é o nome que me ocorre agora. Ali, após retirar do tacho, ainda quente, ia derramando aquela pasta até preencher toda a vasilha. Aos poucos, o doce ganhava uma consistência e, já mais frio, minha avó o partia de maneira que ele ficasse em formato de losango. Depois, separava um prato grande para a sobremesa e, o restante, mandava levar para a venda de meu avô. Eles tinham como destino uma prateleira fechada por telas para serem vendidos aos fregueses de seu estabelecimento. Não duravam mais do que um dia. Eram muito bons mesmo. Mas a gente também furtava, quando ele se distraía ou se ausentava momentaneamente.

Numa visita à minha tia, na mesma região, falei sobre meu desejo e da saudade de tudo que vivemos naquele lugar. Dois dias após, fui presenteado com doces de leite cortados em losango e me emocionei. Eram muito parecidos. Comi, saboreei, adorei. Porém não era exatamente o sabor dos doces de minha avó.

Comentei com meu irmão sobre o desejo e a procura incessante de encontrar o doce leite do passado. Contei a ele que já havia comprado em várias regiões de Minas Gerais, mas, apesar de serem deliciosos, nenhum era igual ao de nossa avó.

Meu irmão me disse que não existem mais doces de leite como aqueles, que sentia muito em me informar e que, mesmo que encontrasse, jamais o reconheceria. Foi então que percebi que o gosto não está realmente no doce. Ele era um componente das fantasias e da inocência de uma criança cheia de ilusões. Tudo depende de um contexto e nada, absolutamente nada, pode ser avaliado de forma fragmentada. Na verdade, para comer aquele doce com o sabor que trago na memória, eu teria que voltar a ter dez anos de idade e passar férias numa fazenda, com uma avó tão doce quanto o doce de leite que habita minhas lembranças. Descobri, depois de tanto tempo, que aquele menino também não existe mais. E que o passado, quando bem vivido, terá sempre um sabor doce, talvez dos doces de leite de minha avó.

Estão servidos?

* Sérgio Marchetti é educador, palestrante e professor. Possui licenciatura em Letras, é pós-graduado em Educação Tecnológica e em Administração de Recursos Humanos. Atua em cursos de MBA e Pós-Graduação na Fundação Dom Cabral, B.I. International e Rehagro. Realiza treinamentos para empresas de grande porte no Brasil e no exterior. www.sergiomarchetti.com.br.

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