*por Igor Costoli
Quase qualquer pessoa, de quase qualquer idade, entende o poder de enxergar o futuro. Pensaria logo naquelas mágicas seis dezenas e imediatamente seria capaz de descrever o impacto que isso teria em sua vida. Administradores e gestores adorariam dispor dessa habilidade. A segurança da escolha certa, a proteção do investimento seguro, a certeza da sábia decisão.
Mas existem exceções. Somos governados por uma delas. O Brasil teve uma oportunidade que raramente se oferece para um gestor público: saber o que acontecerá, em quanto tempo, a partir de quais decisões forem tomadas. Mas recusou a oferta.
Chance que se ofereceu também para a Argentina, para ficar em um exemplo próximo, que optou por respeitar o futuro que viu. Daqui a pouco voltamos a falar dela.
Do lado de cá da fronteira, as formas mais precisas de descrever o que acontece hoje exigem o uso de termos censuráveis. As formas não-ofensivas e mais polidas nos permitem dizer que há dois grandes erros de entendimento em relação à pandemia.
O primeiro é achar que existe uma oposição quarentena x economia. Esse confronto é falso, porque não há uma escolha, não é uma questão de trocar uma pela outra. A crise não decorre do isolamento, ela decorre da pandemia. Todos os países passarão por ela porque isso nos foi imposto pela simples existência do vírus.
Isso fica mais claro quando pensamos no segundo erro. Quem defende manter a economia rodando acha que pânico é isso que estamos vivendo agora, mas quem defende a quarentena está vendo o pânico ali na frente – já virando a esquina, infelizmente.
No famigerado grupo de WhatsApp, essa entidade que nos assombra a todos, um amigo perguntou, semanas atrás, porque o vírus seria problema tão grande num país com tantos assassinatos e mortes no trânsito como o nosso. A única resposta possível foi fazer contas:
Em 2016 (ano mais recente com dados disponíveis), tivemos 37.345 mortes no trânsito. Isso nos dá uma média de 102 mortes diárias. Também em 2016, tivemos nosso recorde de mortes violentas, com 62.517 homicídios, média de 171 mortes por dia.
A Itália, da primeira morte no dia 21/02 até o momento em que este texto é encerrado (segunda, 20/04), sofreu com 24.114 óbitos por coronavírus, média de 402 falecimentos diários. O país passou dos 181 mil casos confirmados.
Detalhe importante: a Itália não escolheu parar, ela escolheu seguir com a economia. O país da bota só foi parado à força, no dia 09 de março, já sob efeitos de incapacitação e mortes. Como os índices crescem em ritmo exponencial, o achatamento da curva italiana pela quarentena se deu já sob um número altíssimo de óbitos. E qual foi o preço desse atraso? Com o país já em “lockdown”, no último mês a média foi de 640 mortes todos os dias.
Agora, percebam como o tempo e as decisões podem tornar as coisas diferentes. Enquanto os italianos só entraram em quarentena 18 dias após a primeira morte, os portugueses iniciaram o isolamento no dia 13 de março, 3 dias ANTES do primeiro óbito por Covid-19.
O breve vislumbre da situação italiana e a decisão rápida pelo isolamento colocaram o país no controle da crise. Com 21 mil casos e 762 óbitos, Portugal tem um número total de mortes inferior ao que a Itália teve por dia no auge da crise (entre 766 e 919 óbitos, diariamente, de 27/03 a 03/04). Os dois países enfrentarão desafios econômicos nos próximos meses, mas só um deles o fará sob o peso de uma tragédia social.
Portugal se encontra em melhor situação que muitos países mais ricos, como os EUA. Os americanos também tiveram a oportunidade de ver o futuro, fecharam os olhos para a realidade, mas foram obrigados a abri-los quando esta veio lhes dar na cara.
Hoje, são mais de 793 mil casos e 42.518 óbitos em solo norte-americano. Lembra das nossas 37.345 mortes no trânsito? O que os acidentes automobilísticos mataram no Brasil em um ano, o Covid-19 ultrapassou no último sábado, em apenas 49 dias, nos EUA.
Tudo isso para ressaltar o que não deveria ser necessário dizer: que o isolamento social funciona, que a demora ou ineficiência na sua adoção custam vidas. Como diz o doutor em virologia Átila Iamarino, quem faz a economia são as pessoas, não o contrário. Cada dia de isolamento não respeitado integralmente são mais dias antes de voltarmos a sair, viver e produzir.
E apesar das iniciativas corretas, mas fragmentadas, de governadores e prefeitos, sem a adesão do governo federal à quarentena o Brasil fica entregue à própria sorte. As iniciativas isoladas diminuíram a evolução da nossa curva de casos, mas cada dia que o presidente e seus apoiadores saem as ruas para defender a normalidade são mais semanas que comprometerão nosso sistema de saúde.
O governo federal poderia ter simplesmente aprendido com o futuro que lhe foi mostrado e tomado as rédeas do seu caminho. O Planalto a opção por nega-lo. Não farei o esforço de especular o tamanho de nossa subnotificação, que tudo indica ser gigantesca. Direi apenas que hoje, 20 de abril, temos 40.814 casos e 2.588 óbitos por Coronavírus. Chegamos ao patamar de mortes na casa das centenas por dia.
Ah, e a Argentina, que mencionei no início? Graças a medidas como o controle na entrada do país, fechamento da fronteira para China, Itália e Brasil, isolamento social e fechamento do comércio, os argentinos vivem uma situação mais de 10 a 20 vezes melhor que a brasileira. Em período semelhante ao nosso desde o primeiro caso, são apenas 3.031 infectados pelo Covid-19 para 145 óbitos.
A Argentina agora se programa para a flexibilização da quarentena e para a volta organizada de algumas atividades econômicas. Enquanto isso, é como se o Brasil sequer tivesse começado seu isolamento para conter o vírus. Argentinos e brasileiros viram o mesmo futuro, mas tomaram decisões opostas. Agora eles colhem os frutos, em breve colheremos as consequências.
* Igor Costoli é jornalista e radialista de formação e atleticano de coração. É produtor e apresentador do Programa Invasões Bárbaras, na Rádio UFMG Educativa.