O realismo no cotidiano
“Os fatos não deixam de existir só porque são ignorados”, diz Aldous Huxley em seu livro “Admirável Mundo Novo”. A realidade pode continuar a ser mitigada ou propositalmente esvaziada com a citação de frases clássicas como, por exemplo, a sempre repetida “o que os olhos não vêem o coração não sente”. Podemos até não dar conta de elaborar ou de resolver todos os problemas que a realidade nos apresenta, mas não dá para negar, esconder ou não assumir o significado que os fatos e dados nos apresentam, por mais doídas que sejam as coisas.
A observação e a análise do emaranhado de acontecimentos do cotidiano, com seus devidos registros percebidos pelo foco das diversas mídias, já são um sinal positivo da presença de olhares atentos sobre os acontecimentos.
Um outro aspecto é ter a expectativa de que as coisas serão mostradas dentro de um determinado padrão ético, quase como se fosse o único possível de existir. Não dá para deixar de lado a premissa de que vivemos numa sociedade de classes, com extremas desigualdades e marcada pelos conflitos entre os diversos interesses.
Os proprietários da verdade única, definitiva e permanente frequentemente se mostram inconformados com a forma que a realidade pode ser mostrada até mesmo numa novela, num programa de variedades na televisão ou num debate postado numa mídia digital. Fomentar o ambiente propício para cultura da intolerância e tentar construir uma hegemonia social no grito e “na marra” será sempre inaceitável para quem acredita ser possível conviver com as diferenças numa sociedade minimamente civilizada e com visões diversificadas. A construção da hegemonia deve ser feita pela inteligência estratégica de quem buscará ganhar um a um dos adeptos para suas causas e ideias, ainda que a sociedade esteja cada vez mais difusa e complexa em seus interesses.
Nesse sentido é interessante observar e verificar como determinados temas abordados pela novela “A força do querer”, de autoria de Glória Perez e exibida pela Rede Globo por volta das 21h, tem causado incômodos a determinados segmentos. Abordar com realismo temas como o tráfico de drogas e as relações entre pessoas que fazem parte do processo, inclusive de amor e suas triangulações, a transexualidade com muito realismo nas dimensões abordadas ou o vício e a compulsão das pessoas por diversos tipos de jogos, e possíveis perdas inerentes, é no mínimo uma boa contribuição para ajudar a acelerar muitas das transformações sociais tão almejadas e necessárias hoje. Alegar que a novela está abordando os temas de maneira “glamourizada” beira o simplismo de quem quer tampar o Sol com a peneira diante das rápidas mudanças que vão marcando nossas vidas.
Quantos e quais, mesmo assim, conseguirão prosseguir com a sabedoria de quem sabe conviver com quem pensa de outras maneiras, mas tendo como referência os fatos e dados da realidade cotidiana ao invés de ficar sonhando com desejos que não se sustentam no campo real?