Versando uma prosa com o psiquiatra
* por Sérgio Marchetti
– Então, como posso ajudá-lo?
– Seu doutor me dê licença para minha história eu contar. Eu já fui muito feliz, vivendo no meu lugar. Hoje eu tô numa terra estranha, é bem triste o meu penar. Nasci na zona rural. Fui roceiro e dono de curral. Adorava olhar para a serra, com seu verde de esperança. Espiar o azul do céu, que ainda trago na lembrança. Sendo adulto, era criança que subia a serra, que mergulhava no rio e cultivava a terra. Tinha um cavalo baio que gostava de campear, enquanto o vento vinha me acariciar, cochichando ao meu ouvido segredos do meu lugar. Seu doutor não imagina o que é sentir um vento mimoso, um arzinho fresco e cheiroso que a natureza lhe doa. Por que a terra, seu doutor, é grata e boa. E fique o senhor sabendo que ela proseia com a gente. Lá no meu sertão, quem nos aconselha é a natureza. Lá não tem luxo de doutor com cadeira e mesa. E digo mais, pode não ter conforto, mas tem gente de presteza. Pessoas que se acolhem, amizade sincera, com certeza. A prosa era verdadeira – não carecia de muito pensar. As palavras iam saindo e arranjando seu lugar. As conversas tinham sentido e não precisava florear. Nosso céu tinha mais estrelas na amplidão; aqui, apesar da luz, tudo é escuridão. Agora, falando assim, uma saudade invade meu peito. Desculpe seu doutor, que eu lhe devo respeito, mas quando a represa das lágrimas invade as cercas do meu quinhão, eu me deito a ruminar as lembranças do coração. Mas não vou mais tomar o seu tempo. Vim aqui para consultá-lo, recuperar a calma. Estou padecendo de uma dor, seu doutor, mas não é dor de corpo é dor de alma. Estou amuado como um boi que comeu erva. Nada me anima, só me enerva. Estou como um capim esturricado que a geada queimou. Eu perdi a fé nas pessoas – a falsidade me decepcionou. Então, seu doutor, o senhor ainda não me examinou, mas tem cura esta dor?
– Meu senhor, que posso eu dizer, mesmo sendo doutor? A sua doença é tristeza de quem perdeu o chão. É sentimento doído de tanta decepção. É angústia e solidão. É doença de gente normal, que não se conforma com um mundo desigual. Não tenho um remédio para tal dor. Também sofro desse mal. Estamos todos muito tristes com tanto desamor. A humanidade enlouqueceu. Trocou tudo por dinheiro, agrediu a natureza e em desatino se perdeu. O desgoverno roubou a nossa liberdade, matou nossos sonhos e nos faltou com a verdade. O seu caso é muito grave, mas o senhor vai sobreviver. Sua moléstia é lucidez e, para tal doença, nada há que cure de vez.
– Mas não há um remédio, seu doutor, que resolva doença tão tinhosa?
– Lucidez é uma doença nervosa. Seus sintomas incomodam a todos que praticam a fala enganosa.
– E a receita, seu doutor?
– Volte para o seu ranchinho à beira-chão, conviva com seus bichos e não assista à televisão. Em breve nosso céu terá estrelas novamente. Observe-o e, quando a estrela solitária for cadente, é o sinal de que haverá esperança de um povo contente.
* Sérgio Marchetti é educador, palestrante e professor. Possui licenciatura em Letras, é pós-graduado em Educação Tecnológica e em Administração de Recursos Humanos. Atua em cursos de MBA e Pós-Graduação na Fundação Dom Cabral, B.I. International e Rehagro. Realiza treinamentos para empresas de grande porte no Brasil e no exterior. www.sergiomarchetti.com.br.
Estrela solitária do molusco