E agora, José?
por Sérgio Marchetti*
Caríssimos leitores,
Venho por estas mal traçadas linhas contar a minha história. Não vou tomar o tempo de vocês, pois não tenho muito para falar. Meu nome é José, mas sou conhecido como Zé do Bento. Isso mesmo, Zé do Bento Rodrigues. Nascido e criado num distrito de Mariana. Ninguém me conhecia. Eu não tinha fama e nunca havia aparecido na televisão. Hoje sou famoso. Vejam a ironia do destino. Por causa da lama, criei fama e já estou até fazendo rima. Digo a vocês que “Eu já fui muito feliz, vivendo no meu lugar. Eu tinha um cavalo bom e gostava de campear… Morreu minha Vaca Estrela, se acabou meu Boi Fubá. Perdi tudo quanto eu tinha, nunca mais pude aboiar”... (P.A.)
Minha casa era humilde. Uma casinha branca com varanda e vista para a serra, “um quintal e uma janela para ver o sol nascer. Eu queria ter na vida, simplesmente, um lugar de mato verde pra plantar e pra colher” (P.). E tive. Mas um dia, como num filme de terror, parecendo o vulcão de Pompeia, um rio, com a força do mar bravio, invadiu o nosso mundinho e cobriu de lama a nossa história. Nós não temos mais memória. Não perdemos “apenas” o gado, nossas casas, familiares e amigos. Perdemos nossa referência, nos perdemos de nós mesmos e, literalmente, tiraram nosso chão. Agora, caminhamos “contra o vento, sem lenço e sem documento”. (C.V.) Éramos religiosos, festeiros e muito alegres. Recebíamos os visitantes que queriam encontrar a paz, a simplicidade e o silêncio. Jipeiros, ciclistas, motociclistas e caminhantes preenchiam nossa rotina com uma prosa agradável.
Em nossa inocência, por estarmos longe das grandes cidades, pensávamos que éramos imunes à lama de desonestidade que cobre o Brasil. Porém, havia outra lama, que não continha metáforas nem escondia a sujeira de um Brasil em decomposição. Mas, em vez disso, uma enchente que viria carregada de rejeitos de minério para soterrar a nossa história.
Mesmo ferido de morte pelas perdas, mesmo com a alma em frangalhos e o coração estraçalhado penso que nossa única opção é a de refazer alguma parte de nossas vidas, já que outras estão definitivamente sepultadas. Não gosto de falar de culpados. Encontrá-los é uma forma de distrair a atenção de quem está emocionalmente revoltado e aspirando por justiça. Mas não resolve o problema. As autoridades devem procurar as causas – por trás delas, fatalmente, se houver, estarão os verdadeiros culpados.
Sei que aos olhos da ganância nós não possuíamos nada. Mas quando o nada é tudo que temos, aprendemos a amar e preservar o pouco que a vida nos permitiu conquistar. Perdemos tudo sim – não caçoem nem nos impeçam de dizer esta frase – porque está doendo em nós.
Saibam, leitores que tiveram a paciência de ler meu relato, que acredito que o ambiente molde as pessoas e que, de tanto lidarem com o minério, algumas delas ficaram duras, frias e com alma de ferro. Há mais de quarenta anos muitos brasileiros vêm lutando para que preservemos as montanhas e deixemos nossas serras e sertões existirem. Mas a ganância cega é maior do que a preservação da própria vida. E o sertão virou mar… de lama.
Vocês, leitores, me perguntam: e agora, José? “Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?” (C.D.A.)
Que as perdas imputadas aos moradores e ao meio ambiente de todos os municípios atingidos possam ser reparadas no menor espaço de tempo possível.
* Sérgio Marchetti é educador, palestrante e professor. Possui licenciatura em Letras, é pós-graduado em Educação Tecnológica e em Administração de Recursos Humanos. Atua em cursos de MBA e Pós-Graduação na Fundação Dom Cabral, B.I. International e Rehagro. Realiza treinamentos para empresas de grande porte no Brasil e no exterior. www.sergiomarchetti.com.br.