Discutir a relação

por Convidado 10 de julho de 2019   Convidado

* por Sérgio Marchetti

Numa feia manhã de um domingo chuvoso, a Alma e o Corpo resolveram discutir a relação, e a primeira divergência estava na disputa para ver quem era mais importante.

O Corpo disse que não tinha dúvidas, pois sem ele a Alma não existiria. E disse mais:

– Eu tenho nome, endereço, profissão. E você? Ninguém nem sabe se existe!

– Existo sim – retrucou a Alma. – Sou eu quem lhe dá vida, seu ingrato. Sou sua essência, seu guia e toda sua existência está em mim.

– Ora, não me amoles com essas baboseiras. Você acaba de ter uma descarga de arrogância. A essência está no cérebro, no DNA, em meus aprendizados, minha inteligência e meu psicológico. Sabia que psique, em grego, é alma? – questionou o Corpo.

– Então você acabou de comprovar que existo.

– Sim, existe como papai Noel. Alma é uma invenção das religiões. Criaram-na para que as pessoas temam o castigo no juízo final. Foi uma ideia dos religiosos para gerar limites nas atitudes dos seres humanos e ter domínio da sociedade.

– Então não adiantou – replicou a Alma. –  As pessoas estão sem medo e sem fé. Ouça esta frase: “não sois seres humanos passando por uma experiência espiritual. Sois seres espirituais passando por uma experiência humana”. – Escreveu Teilhard de Chardin. – disse a Alma e continuou: leia o diálogo de Símias, Sócrates e Cebes, em Fedon (no livro de Platão). Lá, o genial Sócrates compara a lira com o corpo, e a alma com a harmonia. Ou seja, quando a lira apodrecer e estiver com as cordas estragadas não significa que a música tenha morrido também. Ela, por certo, será tocada em outro instrumento. Assim sou eu. Sairei de você e habitarei um outro ser. De forma que sou imortal e você não. Sinto muito!

– Tamanha pretensão a sua, minha cara Alma. Você por acaso está aderindo à onda de empoderamento feminino? Tome cuidado. Minha avó dizia que quem nunca comeu melado, quando come se lambuza.

– Não devemos discutir, meu amado Corpo, apenas devo lembra-lhe de que é mortal e, assim sendo, sua morte será iminente. Lamento por isso, porém não há como mudar essa lei. Você retornará ao pó. Enquanto que eu irei prestar contas do que fizemos.

–  Deixe de ser idiota. – contestou o Corpo. – Você tem inveja da minha beleza. Ou vai dizer que é sua também? Um corpo humano é um milagre de Deus. Poder ser visto, tocado e amado, é uma graça. Não me leve a mal e desculpe-me dizer, mas se você existe, então sua vida é uma prisão; é um castigo cuja sentença foi a de nunca ser vista por ninguém. Nem mesmo por aquele corpo que carrega. Que trágico!

– Não existe nenhum invento perfeito – retrucou a Alma. –  Posso sofrer por não ser vista, no entanto sinto emoção, tristeza e alegria por suas vitórias. Tudo que lhe acontece reflete em mim. Por outro lado, veja a sua fragilidade. Está sempre com uma dor física, uma preocupação com o envelhecimento que o transforma vinte e quatro horas por dia. Minha missão é vir com você e, juntos, vivermos sem cometer grandes falhas para acertar os erros do passado.

– Você é uma enviada especial do Allan Kardec? Faz-me rir.

– Não. Eu vim muito antes dele. Mas não vamos discutir sobre assuntos em que não temos como estabelecer pontos comuns. Ao invés de discordâncias, por que não tratamos de nossas afinidades? Estamos unidos e só a sua morte poderá nos separar.

– A nossa morte. – corrigiu o Corpo, já impaciente, e acrescentou: – deixe de ser superior… sua… imortal.

– Meu querido Corpo, se estamos dizendo verdades, então, não sei se o que vou dizer lhe consola. Contudo, saiba que quando a matéria estiver morta, ou seja, no dia em que você, o Corpo, não responder aos estímulos da vida, eu estarei viva e em possível sofrimento. Pois, a separação é mais dolorida para mim do que para você. E naquele momento, esse “nós” será apenas o “eu” e, como escreveu João (8:32) “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.

–  Então será assim? – perguntou o Corpo melancolicamente.

–  Sim, meu companheiro… Naquele momento a resposta veio de uma outra voz. Era a Consciência que após escutar toda a discussão resolveu intervir para chamá-los à razão: –  nada no mundo está aqui por acaso. Tudo tem um valor. O Corpo precisa da Alma e a Alma precisa do Corpo, assim como o homem precisa da mulher e a mulher precisa do homem –  em qualquer dos casos a união é imprescindível para que haja a vida. A guerra, o ataque, o desejo de querer ser maior e mais poderoso do que o outro, por si só já demonstra sua pequenez.  A Alma tem a função de sustentar a vida espiritual e você, Corpo, tem a missão de constituir uma vida física. Mas quanto mais valor lhe atribuírem sobre a Alma, menos essência terá.  A humanidade se perdeu na busca desvairada do poder, do hedonismo e se esqueceu de trabalhar a espiritualidade –  que é o que vai contar no final.

Desculpem-me por ter invadido a conversa de vocês, mas me competia ajudá-los nessa disputa de “cabo de guerra”. Lembrem-se de que a palavra mágica para ser feliz e manter a saúde do Corpo e da Alma é equilíbrio.

– Consciência, me permita dizer algo para o Corpo? –  pediu a Alma com a voz terna.

– Sim, diga.

– Meu amado Corpo, para que saibas do meu amor, deixo-lhe um poema de Ernesto Cardenal Martínez:

“Ao perder a ti, tu e eu perdemos/ Eu, porque tu eras o que mais amava/ E tu, porque eu era o que te amava mais/ Contudo, de nós dois, tu perdeste mais do que eu/ Porque eu poderei amar a outras como amava a ti/ Mas a ti não te amarão como te amei.”

E os três se abraçaram.

* Sérgio Marchetti é educador, palestrante e professor. Possui licenciatura em Letras, é pós-graduado em Educação Tecnológica e em Administração de Recursos Humanos. Atua em cursos de MBA e Pós-Graduação na Fundação Dom Cabral, B.I. International e Rehagro. Realiza treinamentos para empresas de grande porte no Brasil e no exterior. www.sergiomarchetti.com.br.

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