Depende, uai!
* por Sérgio Marchetti
Eu tenho repetido sempre em meus cursos e trabalhos com o público que tudo é circunstancial. Tudo depende do contexto. E alerto-os para que não cometam inferências sem analisar o processo. Compreender o todo ou exercitar a visão sistêmica são práticas decisivas para a compreensão das causas e dos efeitos. Mas num mundo tecnológico de pessoas impacientes, nomofóbicas e robotizadas, parece não haver tempo para contextualizar mais nada.
Talvez para sair desse manicômio, dia desses fui para o interior desta nossa Minas Gerais e aproveitei para visitar uma tia idosa. Constatei (eu já sei há tempos) que a vida no interior é mais intensa. Eu disse vida – coisa de gente ultrapassada que cumprimenta os vizinhos e conversa com os amigos… Algum leitor deve estar se perguntando: vida intensa, como? O tempo não passa, as pessoas falam devagar. Não há diversão nas pequenas cidades. Ressalto que isso é relativo. Ou como diria minha tia, mineirinha legítima: “aí depende, uai!”. Fiquei pensando naquela frase e percebi nela uma profundidade bem maior do que imaginava. O mineiro – desconfiado por natureza – não se arrisca a responder nada sem pensar bastante. Por isso o “depende, uai!” vem sempre antes de qualquer afirmação. E, ao contrário do que muitos pensam, há sim muita sabedoria contida naquela expressão. Porque tudo depende mesmo do contexto e das circunstâncias. Nada deve ser visto, resolvido, respondido sem que se conheça o processo. Minha tia possui visão sistêmica, mas não sabe o que é isso, nem precisa saber.
Mas em meu agradável diálogo com a parenta idosa, fiz uma viagem ao passado e revivi momentos, além de um vocabulário muito especial. Ela usou frases interessantes: “de primeiro, uma moça não saía de casa desacompanhada de seus pais”. Há quanto tempo eu não ouvia o “de primeiro”. E faz tempo que “moça” não podia sair desacompanhada dos pais. E continuou me “interteno” com aquela prosa quase musicada, me dizendo para por sentido na modernidade e falando que não era do “feitio” dela falar mal de ninguém, mas as mulheres de hoje não “se dão ao respeito”. “A vizinha, por exemplo”, disse ela, “é uma sirigaita daquelas”. “Vê se tem base uma coisa dessas, meu querido” – completou minha tia com um olhar compenetrado e com volume de voz bem baixo para que ninguém ouvisse suas inconfidências sobre a vida alheia. Enfim, prosseguiu com suas histórias que trouxeram à tona a Emulsão de Scott, a gemada, os chás caseiros, inclusive o de Macela – que de tanto ser chamado de Marcela foi aceito nos dicionários como tal. Também se referiu às suas chinelas, à “cardeneta” que anotava o fiado. E sempre surgia o “depende, uai!” Não posso deixar de mencionar que em nossa conversa ainda surgiram acode, arreda, marmota, cruz-credo, “partileira” e outras pérolas do mineirês que me fizeram gostar ainda mais de minha origem. E, antes de sair, claro que não faltaria o café “quentin” passado no coador de pano e acompanhado com quitandas, broa de fubá, pão de queijo, sonhos e muita iguaria. Mas mineiro não sai de mãos abanando da casa de um parente. Além da azia, trouxe na mochila doces de leite cortados em losango e goiabada cascão na caixinha de madeira.
Ao me despedir, decidi que iria andar à pé pela cidade e usufruir da calma e do ar puro que muitas cidades ainda ousam exalar. No caminho, um homem me abordou com toda educação e perguntou quanto tempo levaria para chegar ao centro da cidade. Eu, sem pensar, talvez ainda contaminado pela autenticidade de minha tia, respondi a ele: depende, uai!
* Sérgio Marchetti é educador, palestrante e professor. Possui licenciatura em Letras, é pós-graduado em Educação Tecnológica e em Administração de Recursos Humanos. Atua em cursos de MBA e Pós-Graduação na Fundação Dom Cabral, B.I. International e Rehagro. Realiza treinamentos para empresas de grande porte no Brasil e no exterior. www.sergiomarchetti.com.br.