A rádio cabeça da minha cabeça

por Convidado 8 de dezembro de 2014   Convidado

por Luiz Lobo

Paro o meu carro em um estacionamento e no carro da frente um adesivo chama minha atenção: “Pratique Gentileza”. A leitura me remete a vários lugares ao mesmo tempo, enquanto ouço na Rádio Cabeça a cantora Marisa Monte

“apagaram tudo, pintaram tudo de cinza, só ficou no muro, tristeza e tinta fresca (…) ler as letras e as palavras de Gentileza”.

O profeta Gentileza, que escreveu palavras suaves nos pilares do viaduto do Caju, no Rio de Janeiro, nasceu de uma tragédia – o incêndio criminoso do Gran Circus Norte Americano em Niterói, em dezembro de 1961. Lá morreram 500 pessoas, a maioria crianças. Gentileza, que ainda se chamava José Datrino, morou no que sobrou do incêndio e depois levou uma vida de andarilho, de maluco beleza, escrevendo coisas como “gentileza gera gentileza”.

Procuro uma nova estação na Rádio Cabeça, mas não acho. Portanto sem trilha sonora, enquanto o dial vagueia, começo a reparar nas pichações da cidade. Como é que este pessoal sai destruindo a paisagem assim? Com coisas sem sentido, sem nexo, esteticamente inqualificáveis. Porque não escrevem frases como o Gentileza?

Até as palavras de ordem são desconexas. Quando vejo uma pichação política, parece que entro em um túnel do tempo, tem gente que ainda está nos anos sessenta lá do século passado. Porque este pessoal não desenha coisas agradáveis? Sei lá… deve ser pelo mesmo motivo que o pessoal que tem aqueles sons de trio elétrico em seus carros só ouve música ruim. Você imagina um mané desses ouvindo a 9ª Sinfonia de Beethoven numa altura dessas? Ou Bach?  Só para ficar nos mais populares. Você já reparou o perfil de quem ouve música alta no som turbinado do carro? Repare: homem, jovem, sozinho e de boné… Deve ser fase oral mal resolvida. Um pouquinho de terapia e estaríamos todos livres de tanto mau gosto musical.

Já que o assunto pulou para o carro, quer lugar melhor para expressar a raiva do mundo que o trânsito? Tem gente que sai de casa com disposição de matar ou então morrer. Costura, fecha, corta, faz zigue zague, xinga, ameaça, e mais uma lista enorme de grosserias. Não posso deixar de pensar que essa postura se relaciona com alguns fatores, digamos assim, estranhos. Veja só, esses caras que saem acelerando, mostrando o carrão, o barulhão, a buzina, a coragem, me parecem ter o carro como uma extensão do corpo, ou melhor, extensão de uma parte do corpo que eles gostariam que fosse maior, mais saliente, enfim mais ativa…. Mas e se for mulher fazendo isso? Bom, acho que devem ser as mulheres  desses caras… De novo a terapia. Se infrator de transito fosse condenado a sessões de terapia, o número de acidentes com certeza diminuiria.

Vou andando e estou quase chegando ao meu destino, um cartório… Essa cruel invenção portuguesa, um agrado que os poderosos distribuíam aos seus apaniguados. Imagino que na porta do inferno, não há um portal como descrito por Dante e depois forjado por Rodin, mas sim um cartório. Os condenados ficarão uma parte da eternidade na fila, juntando papéis, documentos, fotos, assinaturas etc. Pensem bem no que um cartório faz. Ele cobra para dizer que aquilo que é seu… é seu! Que você é… você! Que a sua assinatura é… a sua assinatura! Se você respirar fundo dentro de um cartório terá de pagar mais um pouquinho. Tomam seu dinheiro na maior desfaçatez, mas é tudo legal, cheio de normas, regras, leis etc etc. Apesar disso tudo uma coisa me chama atenção: como os donos de cartório conseguem selecionar tanta gente mal humorada ou de mal com a vida para trabalhar atrás de seus balcões. Fala sério, deve ser uma tarefa difícil…

Bom,  resolvido o problema no cartório, retorno ao estacionamento, o carro com o adesivo da gentileza foi embora, sintonizo a Rádio Cabeça na programação de notícias. Lobão está falando mal do PT, Álvaro Dias conta detalhes de mais uma aplicação de botox, Arnaldo Jabor pede a canonização do cara da Petrobrás… Identifico um fundo musical… Noventa milhões em ação, pra frente Brasil !!!  Vou mudar de estação…

Luiz Lobo, engenheiro,  poeta bissexto, casado com Diva, cujo nome já a descreve muito bem, e também blogueiro. Escreve e fala de futebol, embora a bola não goste dele. Também escreve sobre música ou sobre qualquer outra coisa que faça barulho. Gosta de traduzir o economês dos jornais e de falar das coisas que o incomodam na política, sem nenhuma isenção.

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